É preciso que aprendamos a “ser humanos”, sociáveis, estabelecendo conceitos e relações que nos protegem e promovem o crescimento cognitivo e intelectual de acordo com as nossas capacidades e habilidades.
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“Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se comprometem na luta organizada pela sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, a sua “convivência” com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis.”
(FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Cap. 1)
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A educação é uma força transformadora da humanidade! Nisso concordam teóricos de diversas vertentes, com perspectivas formativas das mais variadas, mas que, no seu âmago, acreditam que é possível mudar significativamente o modo como nos relacionamos com o mundo a partir do processo educacional. Se fizermos uma recapitulação do desenvolvimento da educação na história da humanidade, perceberemos que nem sempre ela foi compreendida como universal, fundamental e, muito menos, igualitária. Como podemos clamar por uma comunidade justa sem oferecer um processo formativo que transforme, efetivamente, todos os atores da sociedade?
Esse questionamento, que não é novidade, claro, coloca-nos diante de um dos desafios da educação no mundo atual. Com todas as suas ferramentas, técnicas, programas, metodologias e defensores, a educação se encaminha, cada vez mais, para a perspectiva mercadológica e se distancia de sua dimensão humana-relacional. A relação entre educador e educando passa, na grande parte dos casos, pelos cifrões e pela “rentabilidade”, fazendo do próprio sistema escolar um “esquema bancário” onde o contratante, o contratado e o cliente precisam chegar ao melhor resultado possível e alcançar o “êxito” educacional. Porém, sem abrir mão dos índices de avaliação e manutenção das instituições escolares, é preciso resgatar na prática educacional a compreensão de que o espaço da escola é um “espaço de relação”.
Ao voltarmos o nosso olhar para sociedades antigas, como a Grécia, por exemplo, percebemos que essa monetização da educação, apesar de existente, não era a preocupação primeira do processo educativo. Educar um menino (caso específico da pólis ateniense) é formá-lo para o exercício da cidadania, para as práticas coletivas e, claro, num conjunto de conteúdos conceituais e reflexivos. Muito se discutiu entre filósofos e estadistas sobre o programa educacional, pois a escolha de um programa adequado é fundamental para que o cidadão seja virtuoso e, consequentemente, que a cidade cresça em justiça.
Deixando de lado todas as disparidades temporais (para não cairmos em rasos anacronismos), o que está em jogo na discussão da antiguidade grega é: qual modelo educacional é capaz de formar (transformar) os meninos em homens virtuosos? A preocupação da educação é coletiva, pois um erro no caminho proposto para os jovens da cidade pode levar à queda do próprio regime, à dominação da cidade por parte de outras forças políticas e até mesmo à distorção das leis em favor de grupos que dominaram os interesses do discurso educacional. Apesar de clichê, a máxima de que os “estudantes de hoje são o futuro de uma nação” é tão verdadeira que a mudança de perspectiva político-social passa pelo controlo da educação de um povo.
Toda essa disputa coloca em risco a autonomia e a soberania dos grupos identitários que lutam pela manutenção da sua cultura e, também, pela conquista do espaço coletivo. Se o problema parece mais latente no sistema formal de educação, quando compreendemos a “educação como relação” não estamos limitados às escolas e universidades, mas inclui-se todo e qualquer lugar onde os seres humanos compartilham um pouco de si com o outro. A educação acontece na família, na comunidade, nos grupos sociais, nas instituições educativas, nas tradições religiosas, no desporto, na arte e etc. Ao limitarmos a educação ao “espaço institucional” estamos aprisionando a sua capacidade transformadora e construindo muros entre o sujeito (educando) e o agente (educador). Por isso, não apenas aqueles que atuam formalmente como professores devem ser compreendidos como educadores, mas todas as pessoas que estabelecem a relação de “oferecer uma experiência educacional” e um “sujeito que é educado”.
Sendo assim, grande parte dos problemas atuais da educação (mas não os únicos) estão relacionados ao esquecimento, proposital ou não, da dimensão transformadora que a educação possui. O ser humano se caracteriza como um “ser social” e nenhum de nós nasce preparado para se relacionar com a comunidade humana. É preciso que aprendamos a “ser humanos”, sociáveis, estabelecendo conceitos e relações que nos protegem e promovem o crescimento cognitivo e intelectual de acordo com as nossas capacidades e habilidades. O ser humano “jogado na existência”, como dizia um grande filósofo alemão, Heidegger, não encontra sentido no seu existir sem uma narrativa que possibilite a construção da sua identidade como membro (igualdade) de um grupo e, ao mesmo tempo, como sujeito único (diferença). É preciso aprender a “ser humano” e a educação é caminho de humanização. Eu sou um ser humano que se constitui como tal porque passei por um processo educacional que me formou, moldou, indicou o caminho da “humanidade”.
Grande parte desse processo é feito fora do ambiente formal da educação, mas, a partir de certo ponto da vida, nós somos inseridos numa tradição teórico-conceitual e passamos a ser “educados” segundo a perspectiva civilizatória que instauramos. Se a formação educacional fora do ambiente institucional se inicia com a família e os grupos com os quais aquele ser humano tem contato, com sua institucionalização o “conflito pelo poder” torna-se maior. Se não é possível dominar as famílias e o discurso de valores e tradições, é muito mais fácil dominar o discurso/programa das instituições. Quando o educando passa a fazer parte de uma comunidade escolar que está inserida no sistema monetário (visando apenas lucros e resultados), consequentemente esse discurso fará parte da sua formação. Retirar a formação crítica das ciências humanas, por exemplo, e substituir pelo empreendedorismo, pelo marketing pessoal e uma série de outras “disciplinas” mercadológicas, aponta uma direção para o educando que, sem a liberdade de escolha do seu programa educacional (essa liberdade é vendida aos “clientes” da educação formal, mas não existe na prática escolar), as pessoas estão à mercê do discurso mais poderoso. Quem “vence” a batalha sobre o currículo consegue formar uma geração de acordo com os seus interesses.
Deste modo, se toda educação será norteada por interesses, quais deveriam ser os nossos valores “inegociáveis”? É possível pensar uma educação de qualidade que respeite as individualidades, a pluralidade e, ao mesmo tempo, prepare os educandos para os desafios contemporâneos?
A resposta para essas perguntas já existe: a educação deve ser democrática e reflexiva. É preciso que os programas educacionais sejam participativos e que os especialistas tenham voz para debater, apresentar propostas e, ao mesmo tempo, escutar as questões daqueles que estão fora da instituição para ponderar quais os caminhos são relevantes para uma formação integral. Os educadores são responsáveis por refletir sobre o próprio processo educacional, pois educar é uma práxis e acontece no “chão da nossa existência”. Uma educação democrática consegue esgueirar-se do opressor para, a partir do processo de transformação dos sujeitos, superar a lógica de dominação e instaurar uma comunidade pautada na horizontalidade. A educação democrática, horizontal, libertadora e centrada na pessoa humana não é utopia, é necessidade para um mundo mais justo.
Pode parecer distante, mas o modelo de comunidade proposto por Jesus no seu Evangelho indica-nos como é possível viver respeitando o outro como “sujeito” livre, digno e igual. A “pedagogia de Jesus” é precursora da educação humanista (e talvez, se me permitem, humanizada) que compreende o ser humano como “ser integral”, completo, vivendo no mundo a partir de todas as suas dimensões: biológica, espiritual, social, intelectual e psicológica. (…)
Por fim, entender a educação como um caminho para a transformação e para a humanização é tomar consciência dos desafios, das relações de poder, da importância da democratização do processo educacional e colocar-se em defesa do respeito à identidade de cada pessoa. Uma educação que nos humaniza compreende que somos diferentes, nos coloca dentro de uma tradição e nos dá fôlego para, na nossa inteireza, enfrentar as vicissitudes da vida.
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Por Daniel Couto – Doutorando em Filosofia, UFMG/CAPES; in Domtotal.