O Monstro, a revolta e o fim

Foi cedo nessa noite uma vez mais, foi tarde como sempre e muito tarde, começou com uma palavra como sempre, doeu muito no rosto (não tanto como daquela vez em que acordei na maca no hospital), doeu em todo em caso mais na alma, devastou-me o íntimo ser uma vez mais e desta vez, como sempre destroçada, em silêncio gritei e por socorro, ninguém ouviu, e uma vez mais calei e nada disse, e a noite pela calada como sempre adormeceu a dor e muito tarde, chorei lágrimas tristes dores sentidas e aguardei pela alba resignada… como sempre, uma vez mais e muito tarde.
A REVOLTA
Desta vez, finalmente, acabou. Desta vez, tardiamente, acabou.
Quando lhe disse adeus e que me ia, a criança nos braços a chorar, ergueu a mão como sempre fazia, mas algo nos meus olhos o travou, sabiamente, bate-me agora amigo companheiro marido namorado o primeiro, atirei-lhe em segredo num adeus, tardiamente, não o fez, só ladrou ameaças impropérios, o cão tive de deixar infelizmente, ainda ganiu ao som de um pontapé, tão torpemente, tu vais-te arrepender e um palavrão, constantemente, mas desta vez sei lá porquê sem violência, e felizmente abri a porta, gritos, a criança nos meus braços a chorar, saí de casa pela tarde, decidida… tardiamente, tardiamente, felizmente.
O BECO
Não sei não soube não saberei que fazer. A casa-abrigo é um pesadelo novo. De antigo ainda recordo o meu cantinho, algumas noites alegres e o carinho, eu sei, escasso, mas ainda assim algum, foi pouco, esparso, e de mansinho, mas foi carinho. E os polícias de estranho a me gozarem, senti, foi o que senti, se calhar não, veja lá a senhora se quer isso, o quê?, uns arranhões, depressa levarão sumiço, e agora não sei mais o que fazer, esgotou-se a ajuda pouca de meus pais, tão pouca e tão sem esperança, o ordenado que trago da escola onde ensino filhos de pais avindos pouco é, a nada chega, dois breves telefonemas me ensinaram, nada de novo, tudo de antigo, não há lugar para ti assim sozinha, ó mulher encarreira… nada de novo, o azul que te contaram não é senão uma tela pintada.
O REGRESSO
Pediu muito, implorou, de rojo a meus pés, chorou. Saudades da criança, de ti, juro para nunca mais. Acreditei. Que outro remédio tenho, sozinha, sem dinheiro, contra todos? Acreditei. Voltei. Como sempre como nunca como enfim. O meu velho quarto, a cama de outros sonhos. Só nos olhos do meu filho vejo a luz bruxulear… e tremo. Mas talvez… haja novas oportunidades para velhas tragédias.
O FIM
Gostava de vos dizer que esta história, tão inventada quando real, terminou bem. Não posso, acabam quase sempre mal. As mulheres – e alguns homens, mas prefiro olhar o sol sem peneira – são vítimas inocentes de homens indecentes, indignos da condição de humanos. Que fazer? Tanta coisa. Hoje falar-se-á disto, propor-se-á muita coisa, haverá choro e ranger de dentes e promessas de governantes, planos para formar os polícias e os juízes e as pessoas, é preciso acabar com a mentalidade de vítimas das mulheres, dirão alguns, ou é preciso aumentar a pena dos monstros, dirão outros, ou é preciso inverter a lógica das coisas outros ainda, é preciso é preciso, é preciso… ontem era preciso, hoje é preciso e amanhã, perante telas pintadas de azul e a violência, de novo, na amizade, no namoro, no casamento, no divórcio, em tudo e todo o lado? Será preciso? Dizer o quê?
Por Paulo Sande