A Morte, o Diabo e a Censura nos Bairros de Além do Rio e da Vila

A Morte, o Diabo e a Censura nos Bairros de Além do Rio e da Vila. Este meu tributo é para os Caretos do bairro de Além do Rio e da Vila-cidadela, na década de sessenta, que tanto entusiasmo e alegrias proporcionavam à garotada de que fazia parte e excitação ás raparigas! Eles saíam sempre na quarta-feira de Cinzas, a seguir ao dia de carnaval, quer fizesse sol, chuva ou neve. E porque celebramos a quarta-feira de Cinzas é por isso que a publico

Este meu tributo é para os Caretos do bairro de Além do Rio e da Vila-cidadela, na década de sessenta, que tanto entusiasmo e alegrias proporcionavam à garotada de que fazia parte e excitação ás raparigas! Eles saíam sempre na quarta-feira de Cinzas, a seguir ao dia de carnaval, quer fizesse sol, chuva ou neve. Ora como hoje é quarta-feira de Cinzas, dia 17 de fevereiro de 2021, eis a razão desta publicação.

Nos bairros de Além do Rio e Vila não há qualquer grupo de caretos de carnaval há muitos anos sendo que esta tradição genuína se sublimou no tempo. A ligação mais curta entre os dois bairros ainda é feita pelo caminho da vila.

Neste período de ausência do Carnaval, forçada pela pandemia, não resisti a lembrar estas memórias aos muitos conterrâneos e amigos de Bragança espalhados pelo país e mundo e aos que gostarem da temática e da preservação da nossa memória. Esta também se apaga, pois o esquecimento é fruto dos encontros e desencontros ao longo dos últimos 60 anos, com a saída para a emigração, as grandes cidades e a moderna Bragança.

Estes rituais e tradições das Festas de Inverno são importantes na defesa do nosso património imaterial e da Humanidade e entendo a cultura numa visão antropológica de todo um povo. O uso da máscara é comum, como manifestação cultural, mas esta prática já acontece há muitos séculos. A valorização da máscara e do traje, enquanto artefactos dos artesãos, também o são na dinamização sociocultural e económica, mas disto sabem muito mais os meus amigos que mencionarei á frente.

Ainda guardo da adolescência as imagens ténues dos mascarados e trajes do Carnaval de Além do Rio e da Vila que se faziam na década de 60. Nessa altura o Carnaval era simples, mas divertido porque poucas festas tínhamos que nos entusiasmassem tanto!

Estes dois bairros guardavam uma identidade muito própria, pois eram pequenos, mas com muita gente unida. Todos se conheciam bem, sendo que havia rivalidades entre os dois, pois ficavam a umas centenas de metros.

Os da Vila, no outeiro tem o Castelo de Bragança, que se foi construindo entre os séc. xII-xv. Os de Além do Rio desde a capela de nossa Senhora da Piedade até bem abaixo da velhinha ponte em pedra que junta as margens do rio Fervença. Agora a zona foi melhorada com a construção do Corredor Verde do Fervença e do Centro Ciência Viva de Bragança. À Cidadela histórica do Castelo, onde está a Igreja de Santa Maria e o Museu Militar, acrescentou-se a Academia Ibérica da Máscara.

Apesar da rivalidade entre os bairros no Dia de Carnaval todos eram amigos e juntavam-se para acompanhar o desfile do Diabo da Morte e da Censura que sempre se realizava quer o tempo estivesse bom ou mau! Os grandes atores eram quase sempre os mesmos. Na Vila pertenciam maioritariamente ás Famílias Sena e Valdrezes e em Além do Rio à Família Guichos que tinham muita gente nova e que todas as pessoas conheciam, estimavam e acarinhavam.

Se bem me lembro, o Diabo trazia um fato de macaco vermelho com rabo, uma máscara com cornos e forquilha. A Morte outro de cor cinza ou preta com listras brancas ou esqueleto pintado de branco nas costas e gadanha. A Censura um fato de macaco azul ou preto e chicote. Todos usavam máscaras de chapa e cintos para poderem infringir os tais castigos da praxe ás raparigas!

O grupo de miúdos que entusiasticamente os acompanhavam gritavam espaçadamente: Á Morte, ao Diabo e à Censura! Á Morte, ao Diabo e à Censura … sem cessar e com a força que as gargantas e os pulmões davam e não mais se calavam até se cansarem levantando a curiosidade e o alvoroço á sua volta!

Quando os caretos estavam no bairro de Além do Rio eram desafiados pelas raparigas que do jardim do Castelo, onde está a estátua do D. Fernando, II Duque de Bragança, desciam para o caminho da vila e lá do alto gritavam esbracejando: Á Morte ao Diáábo e à Censúúraâã insistentemente! Os Caretos não se continham e toca a ir ao encontro das raparigas da Vila que as procuravam e elas sumiam da vista.

Quando os Caretos estavam na Vila eram as raparigas de Além do Rio que em baixo os provocavam de novo para o seu regresso, nesta rivalidade sobe e desce.

Do Jardim do Castelo vê-se o largo de Além do Rio e as moçoilas estavam com olho neles. Às vezes estavam a contar com eles vindos do caminho da vila e os caretos apareciam-lhe, por detrás, pela Costa Grande (rua S.to Condestável) ou Costa pequena (rua Serpa Pinto) . A subida era um instante!… dos mais de quarenta e tal degraus na primeira ou de setenta e tal na segunda.

Era tempo do carnaval dos rituais festivos, pretexto para a transgressão e agressividade consentida pelas raparigas.

Todos corriam e para todo o lado procurando as mais descuidadas que andasse pelas ruas da Vila, de Além do Rio, Batocos ou até próximo da Capela de Nossa Senhora da Piedade. O objetivo era sempre o mesmo: atirar-lhes com farinha, farelos ou até ovos e abaná-las bem…. Outras vezes algumas cinturadas, que também não as amedrontavam, pese embora os falsos gritos de dor! Uma ou outra podia magoar-se ou ficar com marcas, mas nada que não passasse…

Tudo era tradição, excitação, alegria, gritos e rizada!… era o dia de exorcizar os medos e ter um contacto próximo com as jovens pois nesse tempo não era fácil e as oportunidades raras! Elas mal viam os mascarados escondiam-se ora nas casas atrás das portas, ora nos baixos ou até junto dos familiares. Outras julgando-se mais seguras nas varandas para desfrutar da festa, mas o Diabo, a Morte e a Censura, não batiam à porta, nem faziam cerimónia e entravam nas casas, arrecadações, baixos e varandas sem pedir licença a ninguém… mas, também ninguém levava a mal pois era carnaval!

Os caretos mascarados conheciam toda a gente, pois eram vizinhos e amigos, mas estes nem sempre os identificavam com as máscaras mantendo a tensão e a dúvida. Não se atreviam a ir para as ruas mais centrais da cidade porque as autoridades queriam confinar estas festas de carnaval aos bairros onde viviam! Na altura não compreendíamos bem o porquê, mas era uma incompreensível falta de liberdade!

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Estes dois bairros da cidade de Bragança eram muito autênticos até á década de 60/70 porque havia uma forte ligação e solidariedade entre os vizinhos e conheciam-se todos desde crianças. O Bairro de Além do Rio acompanhava o curso do rio Fervença e zona urbana envolvente. O Bairro da Vila ocupava a cidadela dentro das muralhas do Castelo e algumas ruas e área urbana de acesso ao mesmo.

Ora as figuras da Morte, o Diabo e a Censura não desapareceram porque foram recuperadas de forma admirável pelo Prof. Doutor Luís Canotilho docente na ESE/IPB, artista no desenho e pintura, tal como a criação da festa com a queima do careto em 2003, data da primeira Mascararte. Ainda me lembro de estar presente numa conversa informal com ele e mais pessoas na Cidadela, muito tempo antes, onde se falou dos carnavais de antigamente nesta cidade e destas três figuras.

“A Academia Ibérica da Mascara (AIM) foi criada mais tarde em 2017 com sede na Cidadela sendo uma associação cultural, sem fins lucrativos que tem um âmbito ibérico e conta já com muitos associados portugueses, espanhóis e brasileiros, estando aberta a todos os que se identifiquem com a temática da máscara ibérica e da permanência dos seus rituais festivos”. A Direção tem feito um trabalho notável muito pelo conhecimento e empenho do seu Presidente, o Prof. Doutor e Etnógrafo António Tiza.

A realização das nove Bienais da Máscara tem tido o apoio essencial do Município assim como do Museu Abade de Baçal, do Instituto Politécnico de Bragança, entre outras entidades da cidade na valorização da máscara e dos seus rituais festivos”(in AIM).

Ora é um evento incontornável que todos não devemos perder porque atrai milhares de pessoas a Bragança . A X Bienal da Máscara deveria ser este ano. Bragança é sem dúvida nenhuma a Capital da Máscara!

Manuel Belmiro Correia, vive em Bragança. Mestre em Extensão e Desenvolvimento Rural. Universidade de Trás os Montes e Alto Douro. UTAD-Vila Real. Licenciado em Humanidades. Universidade Católica – Faculdade de Filosofia de Braga. Bacharel em Engenharia Agrária (ERAC). Escola Superior Agrária de Coimbra. Trabalhou como Técnico Superior na Autoridade Florestal Nacional e no Instituto de Conservação da Natureza e Florestas .(texto e  fotos)