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Salário Justo no século XIV - Região do Norte

Salário Justo no século XIV

Durante muito tempo, depois da aparição do Cristianismo, não se pode estabelecer e desenvolver a doutrina sobre o salário, porque a instituição da escravatura existia então como forma económica dominante. Além disso, como em qualquer outro organismo social, também na Igreja a actividade prática, nos primeiros séculos, absorvia todas as energias; só mais tarde se impôs a necessidade da sistematização teórica.

 Por conseguinte, durante o período patrístico deparamos, a cada passo, com a repetição da conhecida sentença de S. Paulo: Se alguém não quer trabalhar, também não coma, e com exortações morais sobre o pagamento do justo salário sem dilação (‘).

  • Na idade média, com o advento da escolástica, aparecem já as primeiras fórmulas sobre o salário, embora raras e incompletas. E a razão é óbvia: o espírito do cristianismo tinha penetrado tão profundamente na consciência pública, que a justiça era ordinariamente praticada nos contratos de trabalho.

A ordem corporativa, ao menos durante algum tempo, foi uma defesa forte do justo salário; por isso, não era necessária a intervenção, por parte dos moralistas, para uma minuciosa exposição das exigências da moral nos contratos de trabalho.

A atenção dos especialistas era de preferência dirigida para o problema dos preços, problema de maior importância numa época em que dominava a economia dos artífices.

Dadas estas condições, fàcilmente compreendemos porque em S. Tomás se encontram poucas passagens sobre o salário. A passagem mais notável e significativa é da Suma Teológica, na qual se dá a definição de salário. «Por salário, escreve S. Tomás, entende-se o que se dá a outro como retribuição duma obra ou dum trabalho, como se fosse preço dele. Por conseguinte, assim como dar o justo preço pela aquisição dum objecto é acto de justiça, assim também dar o salário, por um certo trabalho, é acto da mesma virtude da justiça» (1).

Desta definição transparece imediatamente qual é a verdadeira natureza do salário, como também a diferença que há entre o contrato de venda ou de aluguer e contrato de trabalho. De facto, S. Tomás não fala de preço do trabalho, mas de um certo preço, de um quase preço, «quasi quoddam pretium». De maneira que não se dá univocidade, mas simplesmente analogia entre preço e salário, entre contrato de venda e contrato de trabalho.

Numa palavra: o trabalho não é uma simples mercadoria. E com razão. «Tomar o trabalho como mercadoria, escreve o P. Liberatore, e o salário como preço, é concepção falsa e fonte de graves erros; entre os quais o maior é o de fazer perder de vista a dignidade humana do operário. Que tais frases se tomem às vezes em sentido figurado, tendo em consideração a analogia pela intervenção da procura e da oferta, pode tolerar-se…

Mas uma coisa é a analogia, outra é a propriedade de linguagem. Em sentido próprio, o trabalho não se pode, de maneira nenhuma, chamar mercadoria; deve em virtude dos termos dizer-se prestação de trabalho, e por conseguinte não preço mas retribuição de salário. Trabalho e salário constituem uma (‘) «ld mim merces dicitur, qnod alicui recompensetur pro retribuitione operis vel laboris, quase quoddam pretium ipsiits. Unde sicut reddere justum pretium pro re accepta ab aliquo est actus justitiae, ita etiam recompensare mercedem operis vel laboris est actits justitiae. Justitia autem aequalitas quaedam est» (Sum . Teol. i, ir, q. 114, a. r).

O JUSTO SALÁRIO como permuta, mas uma permuta que se deve exprimir com a fórmula: faço para que dês, dou tara que faças e não dou para que dês.

«A mercadoria considera-se unicamente em si mesma segundo a sua utilidade e rareza e prescinde do seu produtor… No trabalho não é assim. O trabalho é uma acção humana, e a acção não pode prescindir do agente e da qualidade do agente. Por isso o trabalho não pode prescindir do homem, nem das atenções devidas ao homem» (’).

De outros textos de S. Tomás podemos deduzir outro princípio importante: o salário não pode qualificar-se de justo, se não é suficiente para manter a vida do operário.

O trabalho, de facto, no pensamento do S. Doutor, tem como fim a conservação da vida; por conseguinte, sob este aspecto tem carácter de necessidade, quando constitui o único recurso para escapar honestamente às desgraças da fome. «Se o trabalho manual se ordena a buscar o alimento, é de necessidade de preceito, porque é necessário para tal fim»(2).

«Por direito natural, escreve noutra parte, o homem deve viver de seu trabalho» (3). Portanto, não se pode dizer que o salário satisfaz às prescrições da justiça, se não iguala as necessidades vitais do operário, porque em caso contrário, seria negado um direito aprovado pela natureza.

A justiça do salário, para S. Tomás, não se esgota na sua proporção com as exigências da vida, mas deve também ultrapassar este limite, pois que novos elementos devem algumas vezes entrar no cômputo da justiça. Assim, à maior eficiência produtiva deve proporcionalmente corresponder maior salário (‘), devendo na retribuição observar-se a norma da igualdade quantitativa (* 2).

Acerca, pois, do problema prático para calcular quanto convém, para que se efectue a relação de igualdade entre o trabalho e a remuneração; como também para estabelecer em concreto a necessidade para o salário vital, na doutrina tomista recorre-se à estimativa comum, visto que, sendo o salário um certo preço, não prescinde da sua norma.

Mas «o preço justo— segundo a doutrina de S. Tomás — não é determinado com precisão, pois que consiste numa certa estimativa, de maneira que uma pequena diminuição ou um ligeiro aumento não anulam a equação da justiça» (3).

Tal é, em poucas palavras, o pensamento de S. Tomás acerca da retribuição da actividade produtiva. Para não alongar mais esta investigação particular, reproduzamos as conclusões dum estudioso que, num seu trabalho muito exacto, assim sintetiza as ideias de S. Tomás sobre o nosso assunto.

«Resumamos, escreve ele, o pensamento de S. Tomás. A convenção do salário é perfeitamente legítima. Parece-se com o contrato de venda e de aluguer, mas analògicamente. A justiça exige que se pague o salário imediatamente. A quantia do salário não pode deixar-se ao arbítrio dos contratantes. Deve de facto bastar para o honesto sustento do operário, e também de sua família. É conveniente que a autoridade proteja o salário» .

Com as palavras sublinhadas por nós, quer o Autor atribuir a S. Tomás também a tese de que o salário mínimo, o salário vital, é o salário familiar. Para dizer a verdade, esta doutrina não se encontra expressamente (’)

Com o século X V encontramo-nos perante uma situação económica que obriga os cultores da ética cristã a ocupar-se largamente das novas realidades sociais, e consequentemente, dos problemas morais da indústria e do comércio, em particular da usura, da moeda, dos câmbios, dos montepios, dos bancos, dos preços.

O humanismo que chama a arte à ribalta, e com a arte os costumes do paganismo, separa a vida dos negócios das articulações e dos robustos sustentáculos, com que a tinha fornecido a acção moralizadora da Igreja.

O espírito capitalista bastante vigoroso, em toda a parte deita por terra, sob o impulso exclusivamente utilitário, os diques do justo preço, sobre os quais se tinha exercitado tanto a teoria escolástica. Uma mentalidade diferente, e com ela uma nova praxe económica, se desenvolve um pouco por toda a parte; entretanto, as corporações diminuem com o monopolizar da arte, com as guerras intestinas, com a criação duma casta de comerciantes que quer assegurar o predomínio sobre os operários excluídos das organizações corporativas (2).

Entretanto, nos princípios de 1400 uma actividade mais efervescente se desenvolve na indústria e no tráfego; daí o aumento da riqueza e os fáceis erros, a que está sempre exposta, quando se quebram ou não funcionam os freios inibitórios da consciência moral. Precisamente, para dar eficácia a estes freios prudentes surgem em boa hora homens, como o B. Dominici, S. António de Florença, S. Bernardino de Sena e outros que com as Sumas teológicas, com sermões populares, com tratados de educação cumprem o seu apostolado religioso e social. «E isto, afirma Toniolo, foi de grande proveito para a Economia social, quer porque a índole destes escritos vai mais directamente dirigida à acção humana, e por conseguinte, à mesma actividade económica; quer porque a Escolástica, aplicando também o próprio raciocínio à estimativa daqueles factos e negócios económicos sempre novos e cada vez mais complexos… foi levada a ampliar e aperfeiçoar o seu espírito de análise à luz da observação e da experiência» (’).

Folheando a Suma teológica do grande arcebispo de Florença, S. Antonino, encontramos várias afirmações, em que ele parece antes favorável a dar ao salário o carácter e o valor familiar.

Tratando, de facto, da condição dos mercados e dos artífices, e precisamente do fim a que deve ser dirigida a sua acção, escreve: «O fim do trabalho deve ser o produto ou o lucro, porque 0 operário é digno da sua recompensa.

O fim do seu salário deve ser tal que tenha a possibilidade de governar e prover a si e aos outros segundo o próprio estado, o fim da subsistência própria e dos seus deve consistir na vida virtuosa, e o fim da vida virtuosa é a consecução da glória» (*).

Na determinação do salário, segundo o mesmo santo arcebispo de Florença, deve também influir a quantidade do trabalho, a habilidade especial do operário e os costumes da terra (’). Mas tudo isto não se deve avaliar ao arbítrio de cada um, mas segundo a consciência pública, isto é, segundo a estimativa comum (2).

Devemos finalmente notar como S. Antonino desde o seu tempo enèrgicamente condenou e assinalou com o ferrete da injustiça o salário natural, que se prestou muitas vezes a reduções iníquas sob a máscara da legalidade contratual.

Nos nossos dias este sistema é denominado truck-system. «Perpetra-se, escreve S. Antonino, a fraude na retribuição em moeda com transformá-la em mercadoria. Com isto deprime-se o salário, quando os operários vendem a mercadoria por um preço inferior ao que tinha sido pactuado para o salário… Saiba-se que as convenções se devem observar e os pactos são a sua norma; por conseguinte, se se conveio dar dinheiro por um trabalho, não é necessário depois oferecer alimentos, panos, ou outras coisas, excepto no caso em que o operário espontaneamente aceite desta maneira o salário, ou no caso em que haja falta de moeda em circulação. Mas ainda neste caso o operário deve ser ressarcido do prejuízo que pode sofrer quando vende a mercadoria» (3).

Como o santo Bispo florentino, também o pregador de Sena, S. Bernardino, aplicou os grandes princípios da moral económica aos meandros do ambiente social da sua época, dirigindo-se particularmente às massas populares. O glorioso Franciscano ocupa-se mais da usura, das permutas, dos preços do que do salário; e é nos preços que assenta a concepção que tem do justo salário.

Em geral ele segue, nesta matéria, as mesmas normas fundamentais que vimos em S. Antonino. Salientemos, porém, uma particularidade em que insiste tanto o Missionário de Sena, e com a qual demonstra o carácter social do seu apostolado.

Aludimos à grande estima que ele tem das exigências do bem público, ainda quando se trata de contratos de carácter privado, como a estipulação do preço quer das mercadorias quer dos serviços prestados. «A equidade, proclama ele, deve avaliar-se em relação ao bem comum e enquanto diz respeito ao bem comum, visto que não há nada mais iníquo do que, por causa do interesse particular, prejudicar o público»(‘).

Não é menos importante que S. Bernardino de Sena trate também daquela modalidade de retribuição, que é denominada participação dos benefícios ou dos lucros, ou simplesmente comparticipação.

E apresenta o caso dum negociante que recebe mercadorias para ir vendê-las a terras longínquas. Por este trabalho pode o comerciante pedir um estipêndio fixo sem entretanto incorrer nos riscos da empresa. Esta convenção opõe-se à justiça? «É lícita?» pergunta S. Bernardino, e responde afirmativamente. Trata-se dum contrato legítimo de locação de trabalho, contra o qual não há nada que dizer.

Mas poder-se-ia combinar entre o dono da mercadoria e o caixeiro viajante que, além da retribuição fixa — houvesse uma participação ou percentagem — nos lucros mas não nas perdas possíveis.

Também neste caso, para S. Bernardino, não há contrato de sociedade, porque nele os sócios correm a mesma sorte quer nos lucros quer nas perdas. Numa palavra, observa o Santo, a participação dos lucros assume o carácter de simples salário; é uma das muitas formas do seu pagamento

* * *

Aos compiladores de Sumas teológicas e aos reformadores sociais do século XIV, sucedem-se no século XVI os casuístas que se dão ao cuidado de estudar os fenómenos económicos e definir-lhes o alcance moral. Nenhuma contribuição de valor trouxeram à moral social. Sobre o problema particular do salário, limitaram-se a inculcar e aplicar os princípios já ensinados pelos teólogos anteriores. Embora diminuto, o mérito da casuística de quinhentos não é para desprezar, porque representa uma próvida centelha, que desfaz as trevas acumuladas pelo humanismo paganizante sobre a consciência pública.

Entre os mais eminentes e célebres casuístas está Martin de Aspilcueta que era denominado o Doutor Navarro ou mais simplesmente Navarro.

Vale a pena percorrer as suas volumosas obras para conhecer as suas ideias acerca do salário; o que nos dispensará de falar de discípulos seus de menor importância. Segundo Navarro, o salário funda-se na lei natural, na lei divina e humana (‘).

Como tal, o simples arbítrio das partes contratantes não pode ser sem mais considerado como critério do justo salário. Seja embora o Estado o distribuidor do trabalho, não se pode considerar livre das normas objectivas ao determinar a compensação aos que o servem. «O Estado poderá dizer-lhes: Aceitai esta incumbência com estes encargos e com este salário, se vos agrada: se não, renunciai; não faltarão outros para ocupar o vosso lugar».

Este procedimento do Estado é repreensível, afirma Navarro, porque «o que é injusto na justiça comutativa, não se torna justo, ainda que não falte quem queira defender essa injustiça» (2).

O mesmo princípio achamos confirmado no caso do criado, que aceita um salário inferior ao valor do trabalho feito. Se isto sucede por ignorância do criado ou por necessidade em que se encontra de se sujeitar a uma remuneração injusta, o contrato é viciado em sua raiz; portanto o criado tem direito de se compensar.

O contrato seria, pelo contrário, válido, se o criado, não obrigado pela necessidade, renunciasse espontaneamente a tudo ou a alguma parte do seu salário (‘). Navarro propõe também o caso em que a quantidade do salário é deixada à discrição do patrão. É necessário então, para fugir às sugestões egoísticas do interesse, recorrerão conselho de pessoa honesta e desinteressada(2).

Não podemos negar que estas passagens de Navarro, se não contêm nada de novo, inspiram certo sentido de humanidade simpatizante para com as classes trabalhadoras, o que está em pleno contraste com o espírito do coevo renascimento pagão que, acentuando as distâncias sociais, inoculava o desprezo pelo trabalho e pelos trabalhadores.

Nos fins do século XVI e nos séculos posteriores, aparecem grandes construtores da ciência moral, que sem se envolverem nas questões de casuística dão coesão sistemática à moral cristã. Nesta rica literatura encontram-se tratados mais acurados dos problemas do salário, sòlidamente firmados nos grandes princípios da escolástica. Entre os principais desta nova orientação devemos mencionar, seguindo a ordem cronológica, Luís de Molina, espanhol, que morreu no século XVII, depois de ter ensinado vinte anos na Universidade de Évora. Molina na sua obra De iustitia et iure consagra um capítulo ao salário: De iusta famulorum rnrceâe disputatio. Embora tenha principalmente em vista os criados, encarregados de casas ou de pessoas, não exclui de suas normas os outros operários quer da indústria quer da agricultura (‘).

Seguindo as pisadas de S. Tomás, Molina reconhece a impossibilidade duma possível determinação do salário; admite, pois, que oscila entre dois extremos: o máximo e o mínimo.

Abaixo deste último há sempre violação do direito e da estrita justiça, da justiça comutativa. Quer o operário aceite salário inferior ao mínimo desconhecendo o valor do seu trabalho, quer seja induzido a aceitá-lo por fraude ou ameaças e violências dos ministros régios, ou por necessidade premente de viver, o senhorio, afirma Molina, é obrigado a completar o salário do operário até elevá-lo ao mínimo justo. Deveria até ir mais além, até ao justo salário médio, se usou de coacção injusta ao estipular o contrato de trabalho (2).

* * *

Mas quais são os critérios positivos que nos asseguram que o salário está realmente dentro dos limites da justiça? Para apreender o pensamento do eminente teólogo sobre este ponto, examinemos a passagem em que Molina enquadra a relação de trabalho no ambiente económico e social do seu tempo e, sobretudo, da nação onde ensinava, isto é, Portugal. «São muitos, escreve ele, os trabalhos e os cargos para os quais se encontram pessoas em grande número que por uma certa remuneração anual ou mensal se oferecem de boa vontade, se bem que a remuneração não seja suficiente para a sustentação própria e muito menos para os membros de sua família. Se, porém, de boa vontade aceitam tais condições, isto sucede, porque — embora recebam salário inadequado às necessidades vitais — julgam que se torna suficiente para a sustentação com outros bens ou réditos que se possuem ou se recebem por outras actividades. Quando, portanto, são muitos os que se oferecem de boa vontade com semelhante salário, este não se pode considerar como injusto, embora excepcionalmente haja alguém que não tenha outros bens e ocupações, tenha muitos filhos, ou queira ater-se a uma posição elevada na vida, e por conseguinte não se possa manter» (‘).

É evidente, por estas e outras passagens que omitimos, que Molina não se refere ao operário do salariado ou do proletariado actual, que dum só e exclusivo emprego tira meios de subsistência, e que nada possui além dos braços e das faculdades com que se pode aplicar ao trabalho; mas antes nos apresenta os que se empregam em vários trabalhos e ocupações, donde obtém réditos parciais, que na totalidade são proporcionados às exigências da vida individual e familiar.

O regime do salário, portanto, que Molina tem em vista, é de estrutura complexa, do qual os operários tiram uma soma de proventos diferentes, que, numa palavra, satisfazem às necessidades da vida doméstica. Poderá haver excepções, como nos adverte o mesmo Molina quase no fim da passagem citada, mas contudo o regime, e portanto a grande maioria produtora de bens ou de trabalho, obtém o salário que hoje chamamos familiar.

Então, na hipótese de um regime — como é por exemplo o salariado actual — em que o operário exerce um só ofício e depende dum só patrão, o salário único deve equivaler aos salários parciais de que fala Molina; isto é, deve ser salário familiar. Como é evidente, Molina não defende formalmente este salário, mas se considerarmos bem supõe-no e implicitamente o aceita.

O franciscano espanhol que viveu no tempo de Molina, admite clara e explicitamente que o justo salário é o que é exigido pelas condições familiares e sociais do operário mediante o contrato de trabalho. Córdova, de facto, em seu, Qmestionarium theologicum propõe o caso em que o patrão pode ser obrigado a dar a seu criado salário superior ao estipulado, e responde que não se pode dar norma precisa e invariável.

É necessário, geralmente, recorrer a um homem discreto e prudente, que considere as circunstâncias do caso, a classe de trabalho, a dignidade da pessoa que trabalha, e depois acrescenta: «Nisto é de crer que como o operário e o agricultor com seu trabalho anual ganham para si e para a família o sustento conveniente ao seu estado; assim é muito justo que uma pessoa de condição e grau superior, que trabalha devidamente por todo o ano, ganhe para si e para os seus o sustento conforme a sua condição.

Se isto suceder, o patrão não tem obrigação alguma de restituir» (‘).

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A doutrina de Molina e Córdova tem eco fiel nos moralistas que se sucedem nos primeiros decénios do século XVII, como Léssio, Bonacina, Renaud, Reginaldo, Layman e Vásquez. Este último distingue-se dos outros, porque defende, da maneira mais explícita, o princípio do salário familiar, reproduzindo e fazendo sua a tese de Córdova que mencionámos.

Eis como se exprime Vásquez: «Sobre isto, ensina Córdova, e deve ser certo, que o justo salário devido aos criados pelo seu trabalho, se toma segundo o arbítrio dum homem prudente, tendo em conta os costumes da terra, a espécie de trabalho e o tempo, e outras circunstâncias : e parece, que aquele que serve ao patrão todo o ano, merece para si e para a família, diz Córdova, o alimento e roupa, como outros que desempenham semelhante ofício» (‘).

Com Vásquez distinguiu-se mais tarde e teve influência preponderante De Lugo, o qual recalca os princípios de Molina: amplitude do justo salário entre o máximo e o mínimo; a obrigação por parte do patrão de compensar o operário, se o salário estipulado é inferior ao mínimo justo; a correspondência dos réditos da família às suas necessidades vitais. Daqui segue-se que «numa situação económica em que o salário é o único recurso do operário, para que seja justo, deve bastar ao sustento da família» (2).

Um tanto singular é a razão aduzida por De Lugo para justificar o criado que se compensa ocultamente, quando recebe um salário que não chega ao limite do mínimo justo. Para De Lugo esta oculta compensação é conforme com a justiça, porque o criado não obrigou de modo nenhum o patrão ao contrato de trabalho. Este agiu livremente, e por isso se sujeitou à obrigação, que é intrínseca ao mesmo contrato, isto é, que se faça segundo o preço justo (3).

Há grande número de moralistas que repetem a doutrina de De Lugo sobre o salário e de outros célebres cultores da moral cristã.

De maneira que há um núcleo de princípios acerca da retribuição do trabalho, um fundo tradicional em que dominam sobretudo três conceitos fundamentais: a noção de salário que não se pode justificar com o simples e exclusivo contrato, embora livre de erro, fraude e violência; a noção dum salário familiar incluído quase sempre nas premissas ventiladas pelos especialistas do pensamento económico cristão; a noção dum critério extrínseco à justificação do salário, isto é, a estimativa comum.

Não há dúvida que a estimativa comum está algumas vezes sujeita a ser dirigida e desviada, como sucede actualmente, com uma organização de propaganda, armada com a técnica moderna e dirigida por estrategas célebres, mas no tempo a que nos referimos podia, quando muito, considerar-se como expressão certa da justiça.

Sàbiamente escreve Perin: «Na época em que os teólogos formulavam as suas conclusões, o problema do salário normal não se punha como principio; na prática resolvia-se com o costume. A opinião, profundamente compenetrada do pensamento e sentimento católico, nunca teria considerado como justo o saláro insuficiente a um pai de família que vive unicamente do seu trabalho.

«Além disso, o salário não estava então sujeito às oscilações desastrosas que sofre em tempos, como os nossos, torvos e economicamente instáveis. Certamente também então não faltavam dificuldades individuais de que a caridade se ocupava; mas não se via toda a classe operária reduzida frequentemente a salário nitidamente insuficiente. O operário, em geral, tinha recursos, que sem o pôr ao abrigo de privações duma certa pobreza, o livrava pelo menos da miséria e dos sofrimentos e degradação que a acompanham.

«Naquele tempo de vida cristã, a justiça inspirava-se na caridade. A estimativa comum era justa para o operário; ela não suportaria, como perante um facto com que a consciência não tem nada que ver, que os salários fossem geral e habitualmente inferiores às necessidades»

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Edição Religiolook