As eleições do tio Joaquim

O tio Joaquim, tanoeiro, casado com a Glória do “barro”, nasceu debaixo do sol minhoto e cresceu nas sombras das videiras onde percebeu o ritmo da vida e do tempo, ele que era perspicaz na prevenção das maleitas da vinha e da vida. Cauteloso, com aquela cautela que só os pobres conhecem, tornou-se desconfiado dos milagres da vida e acreditava pouco no padre quando este ao domingo anunciava a boa-nova que ele não via.

Tinha nascido no tempo da história a preto e branco e recordava-se das recomendações do seu pai que tendo experimentado as minas de volfrâmeo no Gerês dali tinha trazido saberes muito úteis para quem apenas vivia da terra.

A herança das minas permitiu ao tio Joaquim construir uma casa no campo, de granito, pois claro, e uma varanda virada a poente e onde ao fim do dia esticava as pernas, puxava um “Português Suave” (sem filtro) comprado na loja da Miquelina – uma prima boa com quem gostava, ao domingo, de conversar pela tarde. Ela até tinha uma telefonia e tudo e podia assim ouvir os golos do Benfica.

A Dona Glória, essa senhora vestida de paciência, aprendera a extrair o barro da terra e a moldá-lo em figuras populares que mais tarde vendia na feira de Barcelos. A banca da Dona Glória era uma festa e tinha de tudo: presépio (com burro e tudo), canecas,  e até imagens dos astros do futebol.

À Dona Glória costumava perguntar o tio Joaquim “como vão as coisas?”. Ele queria saber das notícias, do que é que o povo falava, pois não perdia tempo a ouvir as notícias da rádio feitas por esses “aldrabões”. No fundo não entrava na melodia que lhe era oferecida e apenas acreditava nos golos do seu clube quando o locutor berrava a eles. Não havia que desconfiar, se gritava ao golo é porque a bola entrou e se não entrasse, o que interessava era que contava na mesma e o clube da águia ganhava.

“Tudo igual” – dizia a mulher, “os ricos pedem desconto e os pobres pagam logo”!

Depois da janta e do cigarro na varanda, a noite caía e os dois esperavam pela manhã de um novo dia.

Por volta de 1983 – a democracia já tinha dado provas e de Lisboa chegava a notícia de um governo com Mário Soares pelo PS e Freitas do Amaral pelo CDS, e também se falava de um tal FMI sempre explicado na televisão (nesta altura já havia em casa uma e a cores) por um tal Ernâni Lopes, especialista a fazer contas que, não fumando “Português Suave”, puxava por um cachimbo solene todo preto.

A coisa era confusa e não dava a “cara com a careta”- o tio Joaquim enquanto dava a volta às pipas que fazia foi reparando na roda desenhada no solo e percebia que para a coisa rolar os movimentos contrários o faziam perder tempo! Então como ia rolar este governo com Soares e Freitas?

Não disse nada a ninguém, nem à Glória para evitar um respondilho tipo “que é que tens a ver com isso, deixa-os lá que não te vão dar nada”

Mas aquilo ficou-lhe na cabeça e lá continuou a “vida” surpreendida pela visita de um velho amigo dos relatos do Benfica e da prima que ali apareceu e o surpreendeu pois vinha todo bem posto, com fato de domingo, numa tarde de quarta feira.

Vinha em nome do Partido Socialista de Braga falar “com o meu amigo, pois a direcção entende que o meu amigo (repete) vai dar um grande presidente da Junta”!

“Vai-te foder, oh Tónio” – respondeu para acrescentar, “o meu partido são as pipas e a minha Glória”.

Entre “olha que não”, “dá-me um cigarro” e “sapatadas nas costas”, ao de leve, o Tónio encontrou espaço na conversa para adiantar mais pormenores e disse:

-Oh  Joaquim, conheces o Mário da senhora Olívia, não conheces? Filho do sargento da GNR de Prado e neto do Alves de Ponte de Lima?

  • Já ouvi falar, o que tem?
  • Ele vai ser candidato à Junta pelo PSD, os laranjas mandam nisto desde o 25 de Abril e nós não os conseguimos tirar de lá.
  • O que é que tem. Deixa-os lá ficar. Eu faço pipas há mais anos  e não vou mudar, nem disso vem mal ao mundo!
  • Não é isso Joaquim, os “gajos” mandam nisto”, “fazem o que querem” e nós “chuchamos no dedo”. É preciso fazer uma lista e tirá-los de lá. Queremos que venhas a uma reunião logo à noite. Não tens nada a perder, se não gostares, deixa lá, mas gostávamos que fosses tu.
  • Vou falar com a minha Glória, se ela deixar, apareço, se resmungar não vou.

A Dona Glória chegou de Barcelos, aqueceu a comida do meio-dia e pôs a mesa. O tio Joaquim demorou mais que o habitual a fumar o cigarro da tarde pelo que o visitou na varanda.

  • Oh home, o que é que tens? Não vens comer e estás com uma cara branca, pareces um boneco antes da pintura, arre!
  • A pintura é outra, veio cá hoje o Tónio e falou comigo,
  • e que quer ele?
  • que eu vá hoje a uma reunião,
  • Reunião, o que é isso? não me digas que te achas tão importante que agora em vez de pipas vais a reuniões…
  • Deixa lá, Glorinha, fiquei a pensar depois dele falar comigo. Ele diz que nós também podemos mamar na Junta se o tirarmos de lá o Mário. E……
  • Olha Jaquim, o nosso partido são as tuas pipas e os meus bonecos na feira. ouvistes!?
  • Está bem, Glorinha, vamos lá comer e conversamos depois.

No fim do jantar e antes da novela, Dona Glória olhou ternamente para os olhos do Joaquim (o meu home):

  • vai lá à tal reunião, não fales muito.

Na quarta-feira, pelas 21h00, lá chegou o tio Joaquim para a tal reunião. Quase todos de fato, ele que não tinha mudado a roupa do trabalho, e viu que estava lá um senhor de gravata, advogado de Braga, que falava muito, talvez bem, mas ele não percebia em que manobra estava metido. Socialismo pra direita, socialismo prá esquerda….trabalhadores pra cima, trabalhadores pra baixo, salários baixos, salário altos – uma trapalhada que num tinha encontrado à volta das suas pipas.

Apeteceu-lhe ir prá beira da Glória mais cedo mas cedeu. Ele sabia que quando chegasse a casa ela lhe ia perguntar como correu a reunião e portanto tinha de ficar até ao fim.

Depois do senhor de gravata se ter calado, finalmente, começou uma dança que ele não conhecia. Começaram a perguntar a todos e cada um o que que é achavam do discurso do senhor doutor. Toda a gente falava e o tio Joaquim começou a ruminar:

  • o que vou dizer, quando chegar a minha vez?

Ele não conhecida nenhuma palavra que terminasse em ismo, prevendo-se uma salgalhada quando falasse. E esperou pela sua vez. Ficou para o fim:

  • Tio Joaquim, então e vocemessê o que acha?
  • Ora bem, eu gostei muito de os ouvir, mas não percebi nada!
  • Mas pode falar, diga lá!
  • Se a minha Glória estivesse aqui…. Ela costuma dizer, quando vem da feira, que os “ricos pedem desconto e os pobres pagam a pronto”!
  • Isso – diz o doutor de Braga, “o PS é os partidos dos pobres”.

Nesta ocasião os presentes verificaram que o candidato Mário do PSD era riquíssimo, na tradição da sua família, e perceberam que esta ideia podia funcionar. Se o povo não sabe o que é o socialismo sabe o que é ser pobre. Vamos por aqui.

Mais reunião, menos reunião, mais manobra e menos manobra, a lista foi feita e com a animação de um copos ao domingo e vivas ao Benfica, o tio Joaquim aceitou botar o seu nome na lista, avisando que iriam perder pois ninguém havia vencido a família do Mário e não ia ser agora.

A campanha foi simples, sem bandeiras mas muitos copos e algumas sandes, percorreram-se as ruas da freguesia com a liderança de Joaquim, o tanoeiro, e home da Glória, que não sabendo nada de socialismo apenas dizia a quem o ouvia: “Junta-te aos pobres, se queres perder”!

O resultado foi devastador. O tio Joaquim ganhou por 60% e festejou com a lucidez dos homens experimentados. Deu vinte contos ao Tónio e disse-lhe para ir a casa do Mário comprar-lhe os foguetes da festa, pois temos de ser uns prós outros e a festa de uns não deve ser tristeza para outros.

Notas suplementares:

  • o tio Joaquim ainda é vivo e conta esta experiência na tasca da aldeia, onde se encontra nas tardes dos dias. Não trabalha, pela idade, mas também ninguém encomenda pipas.
  • a Dona Glória que “Deus tem” mantém-se eterna na memória do tio Joaquim.
  • a prima Miquelina já faleceu tendo doado a sua herança à Misericórdia local e sendo recordada pelo caldo verde que partilhava com o senhor abade.
  • O Tónio partilha o tempo com o tio Joaquim, mas tem a “honra” de ver seu neto a presidente da Junta – um líder moderno, também tem uma empresa de formação profissional, angaria fundos comunitários como ninguém e criou uma empresa imobiliária com um sócio do PSD.
  • O Mário teve muito sucesso na vida depois de perder a Junta. Regressou a Barcelos onde tem uma fábrica têxtil, hoje gerida por um neto “fino para o negócio” onde dá trabalho a 220 trabalhadores e a quem paga o salário mínimo.

Arnaldo Meireles